terça-feira, 25 de abril de 2017

À frente dele o mar.
Sempre o mar.
Olha-o.
Ouve, entre arrepios, o embate das ondas nas rochas.
Existe um som que não se extingue no mar. E tudo se silencia.
Fecha os olhos e imagina-se no estado líquido, nessa mistura ondulante que navega na corrente de uma outra força.

{Apontamento 9.}

sexta-feira, 21 de abril de 2017

Ele estava novamente a fumar um cigarro encostado à parede de onde via a árvore que gritou e a mesma que fez com que aquela mulher durante dois dias seguidos lhe pedisse um cigarro. 
Estava a fumar. Prestes a entrar no tempo limite do seu horário, do seu compromisso. Enquanto fumava ia olhando para as inúmeras pessoas que passavam. Fixou o olhar num casal. Ela tinha uma garrafa de água de plástico vazia nas mãos, percebia-se que estava incomodada com aquele objecto, não sabia muito bem como o segurar, aquilo incomodava-a. Ele, um homem, que ia ao lado dela, arrancou-lhe a garrafa das mãos, ela ficou tensa, ele riu-se e dirigiu-se ao pequeno canteiro da árvore gritante e com o riso alargado deitou a garrafa para o mesmo. 
Ele continuava encostado à parede,ficou a olhar para a árvore e num gesto com uma intensão não moralista, pois foi assim que sentiu avançar o seu corpo até à árvore, agarrou na garrafa e deitou-a para o lixo. 
Entrou para enfrentrar a massa de gente que o esperava no local do seu compromisso. 
O limite do horário chegara ao fim.  

{Apontamento 8.}


sábado, 15 de abril de 2017

Correu para chegar a tempo ao sítio onde tinha um horário marcado, um compromisso, uma função que necessitava da sua presença, não por ser ele especificamente, apenas por agora ter sido ele a assumir esse compromisso.
Virou a esquina para subir a rua íngreme.
Parou. 
Olhou até onde o seu olhar conseguia ver. Um mar de gente. Uma massa que lhe parecia compacta, impossível de trespassar. Respirou fundo. Avançou devagar, aos poucos os espaços que poderia ocupar com o seu corpo foram surgindo. Avançava. Ia-se tornando também parte daquela massa. Quase a chegar ao topo um homem falou mais alto do que toda a gente. Ele olhou e continuou a andar. O homem continuava a falar, aquilo que dizia ainda não lhe era muito perceptível, olhou outra vez, e desta vez algo naquele corpo o fez parar. Não conseguia deixar de ver e ouvir:
"porque só há uma coisa entre nós e o outro, entre A e B. E não é uma coisa estanque, manifesta-se por entre as zonas que não se vêm, mas que se sentem no nosso interior..."
O homem segurava uma bíblia nas mãos. A massa continuava a movimentar-se com uma fluidez ondulante. E ele deixou-se ficar parado a sentir-se imperceptível durante mais um bocado.
Passado um bocado teve que avançar, já estava atrasado.  
Correu. 

{Apontamento 7.}    

domingo, 9 de abril de 2017

Ela está sentada num dos bancos do metro. 
Cabisbaixa. 
A mão segura a cabeça. 
Esta postura revela, para ele que vê, a necessidade de apoio ao cansaço, ao cansaço extremo. 
Ela veste uma camisola de um rosa pálido que tem escrito a letras pretas sobre o peito:
"CREATE YOUR OWN DREAMS". 

{Apontamento 6.}

quarta-feira, 5 de abril de 2017

Surgiu-lhe uma frase feita como as dos pacotes de açúcar. 
Primeiro rejeitou-a, depois voltou a pensar nela, decidiu escrevê-la:
Talvez o verdadeiro acto de rebelia resida ainda naqueles que conseguem amar. Que amam e se partem aos pedaços, mas voltam a amar, mesmo que depois se desfaçam novamente, voltam a amar. A rebelia é o verdadeiro acto de amar. Eu rebelo-me porque amo. O cínico secou a fonte, o romântico afogou-se e frustrou-se na espera da materialização das suas fantasias à sua própria imagem. 
Parou de escrever. por vezes tem receio de escrever certas coisas. Receio, não medo. Porque o mundo é tão instável.
Hoje foi isto que viu. 

{Apontamento 5.}

domingo, 2 de abril de 2017

Ele saiu de casa. 
Desceu a rua. O tempo mudara de um dia para o outro. Tinha demasiada roupa, mas iria precisar dela para a noite. Desceu a rua a pensar que iria entrar no metro, pelo menos esse era o seu plano. Saiu de casa com tempo, não estava a correr, mas tinha uma hora marcada para estar num sítio, um compromisso, uma rotina, um horário de trabalho. Tinha que descer aquela rua naquele momento.
Decidiu ir a pé. Arriscou um pequeno corte no hábito. Teria tempo para chegar a horas. Sim, teria.
Na mesma parede fumou um cigarro, mas desta vez a senhora de voz rouca, mas delicada, não apareceu, pensou nela por micro-segundos. Olhou em frente, já era de noite, a roupa a mais estava agora certa, proporcionava-lhe a temperatura ideal, ainda bem que, de alguma forma, sempre soube ser paciente, as coisas talvez acabem por fazer sentido, em algum momento, em algum dia. 
Olhou em frente. O passeio que há uns dias atrás tinha sido retirado, estava agora de novo reconstruido e no meio do cimento uma árvore plantada. 
Olhou em frente, mas agora para a árvore.
Ouviu o seu grito.
Olhou para o outro lado e deparou-se com o olhar de uma pessoa de café e cigarro na mão que andava nervosamente de um lado para o outro até que se encostou na parede, longe dele, com o olhar de esguelha. 
Tal como à árvore, ouviu o seu grito.
Apagou o cigarro e entrou para dentro do edifício, olhou uma vez mais para trás e o olhar de esguelha mantinha-se fixo no som ensurdecedor do grito daquele corpo. 

{Apontamento 4.}  

 

sábado, 1 de abril de 2017

No metro distanciou-se de si e olhou para as pessoas. Para os olhos, a inclinação da cabeça, mãos. 
Os olhos mostravam uma tristeza profunda, cansaço, ansiedade. As unhas das mãos eram roídas enquanto a respiração ganhava um ritmo ofegante. 
Fim de viagem. 
Saiu para o mundo, para a poeira. 
Arrumou meticulosamente quarenta tubos de sal durante a passagem da música My way, com uma versão remix.
Apeteceu-lhe chorar.
Chorou.
Ninguém viu, mas por dentro afogou-se.

{Apontamento 3.} 

Este texto começa na falha. Deveria começar na falha. Talvez não devesse sequer começar. Mas já começou e irá arrastar-se até não ter mais p...